6 de out. de 2012

A Vida de David Gale


A última cena de A Vida de David Gale (The Life of David Gale, Alan Parker, Eua, 2003) revela que o protagonista (Kevin Spacey) escolheu morrer com uma injeção letal, escolheu ir para o corredor da morte, escolheu ser acusado de estupro e assassinato. Por uma causa nobre? Por desespero? O roteiro apresenta as justificativas para a escolha de Gale utilizando desde a filosofia socrática até a psicanálise.
Em uma aula na Universidade do Texas, o renomado professor de filosofia explica aos estudantes alguns conceitos lacanianos. Ele finaliza a aula dizendo: “… a lição de Lacan é: viver de desejos não traz felicidade. O significado de ser humano é viver por idéias e ideais, e não medir a vida pelo que obtivemos em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade, auto-sacrifício. Porque no fim das contas, a única maneira de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros.” A vida dos outros sempre foi uma grande preocupação para David Gale, ativista da DeathWatch, entidade que luta contra a pena de morte. Usou a própria morte para mostrar o quão injusta pode ser a pena capital. Cedeu a própria vida como prova de que inocentes são punidos num sistema falho. Gale fez o que o governador do Texas pediu: “Dê um nome. Dê o nome de um inocente que o estado do Texas condenou à morte no meu mandato. Vou anotar aqui. O nome de um homem, de quem se possa provar a inocência, e ordeno moratória.”
Mas a causa nobre não é a única justificativa para o ato extremo. Gale recorre a São Judas para confessar que não suporta mais a situação em que se encontra: “Sabe por que São Judas é padroeiro das causas perdidas? … Houve dois Judas. Judae, o santo, e o outro, Judas Iscariotes, o cara mau, que traiu Jesus e tentou beijá-lo. Nos tempos medievais ninguém rezava ao bom Judas por medo que o mau Judas interferisse. Por isso ninguém pedia nada a ele a não ser em caso de desespero.”
Gale já não tem muito o que perder quando toma sua decisão. O que havia de mais importante em sua vida já não está mais a seu alcance. Sua esposa o abandonou, foi para outro continente, e levou com ela o filho deles. Gale corre o risco de perder a guarda do filho e não consegue sequer falar com ele por telefone. Foi acusado de estupro, vítima de uma armação de uma aluna. Foi demitido da universidade e não pode mais lecionar – não é aceito em nenhuma instituição por ser “politicamente incorreto”. Também foi afastado da DeathWatch, impedido de defender seus ideais.
Na Apologia de Sócrates, Platão narra a defesa do mestre, acusado de corromper os jovens, perante o tribunal de Atenas. Sócrates poderia sugerir uma punição alternativa à pena de morte, como o exílio. Sugeriu uma multa irrisória, e foi condenado a tomar veneno. Preferiu a morte a abrir mão do que mais amava. Não aceitaria o exílio, não poderia parar de filosofar: “não poderei agir de outro modo nem mesmo se estiver prestes a morrer incontáveis vezes”1.
David Gale, citando a obra de Platão, deixa claro o quanto se sente injustiçado. Mas depois vai fazer exatamente o que fez Sócrates: aceita a pena de morte, em vez de propor para si uma “pena alternativa” – ele tinha como provar sua inocência. Gale não teme a morte, assim como Sócrates: “… a morte, ninguém sabe se acaso não é o maior de todos os bens para o homem – porém a temem como se soubessem ser o maior dos males! 2
Quando percebe que não vai conseguir mais dar aulas, Gale sai pela rua, embriagado, dizendo aos transeuntes: “Sócrates propôs essa idéia: ele disse, e se eu pagar uma multa em vez de morrer? Ele sugeriu uma multa. Tudo o que se tem que fazer para viver é propor uma forma apropriada de punição. Sabe quanto ele sugeriu? 30 paus, 30 mina, a moeda da época… Os jurados ficaram tão putos que a maioria votou pela pena de morte, mais do que haviam votado antes. Não faz sentido. Igual a Judas, o que beijou Jesus”.
Na continuação da Apologia – Críton (Sobre o Dever) – Platão narra a visita de Críton ao filósofo na prisão, dois dias antes da execução. O velho amigo de Sócrates argumenta que se a condenação foi injusta, seria justo fugir. No filme, na última visita que a repórter Bitsey Bloom faz a Gale na penitenciária, ela pergunta se ele vai deixar que o matem. Gale responde: “Bitsey, nós passamos a vida tentando deter a morte. Comendo, inventando, amando, rezando, brigando, matando. Mas o que realmente sabemos sobre a morte? Só que não tem volta. Mas chega uma hora na vida, um momento, em que a mente subsiste aos desejos, às obsessões. Quando os hábitos sobrevivem aos sonhos. Talvez a morte seja uma dádiva. Quem sabe?”

1.PLATÃO. Apologia de Sócrates, precedido de Êutifron (Sobre a Piedade) e seguido de Críton (Sobre o Dever). Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 90
2. idem. p. 88 

[Originalmente postado aqui.]

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