8 de jan. de 2010

A dificuldade de ser hippie - MARTHA MEDEIROS

  • Na véspera do último dia 31, publiquei uma “Carta a 2010” na qual, entre outros desejos, pedi para termos um ano mais paz & amor. Pra não ficar só na teoria, passei o Réveillon numa praia uruguaia que ainda não frequenta a mídia, pra felicidade geral dos nativos. Fui a Punta del Diablo, a apenas 40 quilômetros de Chuy, um local sem a infra e a badalação de Punta del Este e que ainda preserva uma rusticidade que nos remete aos anos 60/70. Fazia tempo que eu não via nada tão “pode crer”, um astral tão mochileiro, nem garotada tão bonita e despojada. Foi a legítima volta no tempo. Imaginei Búzios sendo descoberta por Brigitte Bardot e Garopaba descoberta pelos surfistas, numa época em que ninguém estava interessado em modismos ou aparências, apenas em se divertir sem repressão. Eu sei que o mundo mudou e Punta del Diablo está mudando também: aposto as minhas fichas em que dentro de três ou quatro anos o boom imobiliário irá transfigurar esse astral ainda genuíno da praia (e esta crônica pode estar colaborando pra isso), mas a verdade é que fazia muitos anos que eu não me sentia tão à vontade e tão bem instalada numa era que passou, mas que ainda reconheço como minha, mesmo nunca tendo sido. Há em mim uma hippie que não fui por ter nascido alguns anos atrasada.


    Foram quatro dias de sol rachando, mar azul e dolce far niente, sem notícia alguma do Brasil. Ao final do breve descanso, percorri os 500 quilômetros de volta a Porto Alegre e fiquei sabendo, estarrecida, que o litoral do Rio de Janeiro esteve inundado, soterrado, incapacitado de qualquer festejo nesse final de ano, e, diante da tragédia vivenciada por tanta gente, senti um tremendo desconforto, tive que cair na real: o mundo hippie exige uma alienação quase impossível de ser adotada hoje em dia. Quem não quiser sofrer, que vá pra Punta del Diablo em definitivo, não volte mais. Aqui, a vida exige participação.

    Foi só a primeira má notícia de 2010. Ano novo não é sinônimo de ano incólume, ano utópico, ano intacto. Serão mais de 360 dias comuns e falíveis. Mas dói quando caímos das nuvens assim tão na boca do ano, tão na estreia, como já aconteceu anteriormente, a exemplo de tragédias como o naufrágio do Bateau Mouche no Réveillon carioca de 1988 e o tsunami indonésio em 2004.

    Que seja. Dói, mas ainda podemos tentar manter a serenidade diante do reverso das expectativas felizes que todo início de ano impõe. Tentemos, mesmo contra a maré, mesmo informados sobre o inferno lá fora, manter uma alma hippie, um espírito mais desapegado diante de tanta parafernália, de tanto supérfluo incutido como essencial. Adoraria que desenvolvêssemos uma humanidade mais retrô, que a simplicidade virasse tendência de comportamento e nos ajudasse a promover um astral mais puro e leve nesta nova década que se inicia – aliás, que só se iniciará mesmo em 2011, a antecipação é uma ilusão, mas as ilusões fazem parte do pacote paz & amor de que precisamos urgentemente.

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