8 de fev. de 2010

Ilusão de Carnaval, por Paulo Gaiger*

A generalização costuma ser um recurso fácil que oculta realidades, seus matizes, detalhes e possíveis verdades. Ao contrário de resultar de uma reflexão madura, a generalização frequentemente é fruto de um senso comum que simplifica o complexo e amplifica o preconceito e a mentira; estaciona no confortável espaço da homogeneização e neutraliza a diversidade, as unicidades e os indivíduos. Retroalimenta-se dos estereótipos e da ausência de discernimento e, muito provavelmente, da falta de caráter e de pensamento. Assim, o Brasil é Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro é Ipanema, e Ipanema são três garotos malhando o corpo na praia, e os três saradinhos, por uma lógica sem pé nem cabeça, passam a ser todos nós, os milhões de brasileiros. Este foi o infeliz e falacioso ponto de vista de uma reportagem publicada na revista XLSemanal, nº 977, suplemento dominical do jornal espanhol El Correo, que li quando vivi em Bilbao, sob o título “Brasil, onde o amor não tem limites”.

Resumidamente, o jornalista irresponsável escreveu que, para nós, brasileiros, as questões relativas ao sexo e ao corpo estão resolvidas e, pior, avançadas, que dedicamos quase todo o tempo à ginástica em busca do corpo apolíneo, que as brasileiras são disponíveis e basta aos homens exibirem os tríceps e peitorais para que as gurias se lancem perdidamente em seus braços. Sentencia, para a graça do leitor, que todos os brasileiros começam a namorar na praia. Suponho que os de Restinga Seca também.

A matéria seria só uma anedota de mau gosto não fosse por refletir, involuntariamente, uma verdade triste: a fantasia que alimentamos de nossa identidade. Se às vezes nos falta o discernimento e respeito a nós mesmos, é porque semeamos ao longo dos tempos esta imagem que nos reduziu ao estereótipo e ao preconceito. Somos sorrisos, pernas, peitos e bundas, mulheres tostadas. Vivemos uma mentira desde antes de Getúlio, passando por Juscelino e pelos militares, que nos solaparam, apoiada no ufanismo, no clichê, na música idiotizada, no cinema medíocre e nas manchetes de revistas: somos pobres, mas somos felizes; sambamos em todas as esquinas; pandeiro e cavaquinho; ai, meu barracão caindo, mas de onde vejo as estrelas; viva o morro; tenho a minha cabrocha; a gente dá um jeito; aqui tem mulata; somos um povo pacífico; somos da paz, meu irmão e contra o desarmamento; não sabemos votar; o melhor futebol; Deus é brasileiro e, muito pior, Jesus voltará; big-brother; pagode e bate-estaca no som do carrão.

Agora, com a aproximação de mais um Carnaval, esta imagem se cristaliza e voltamos a nos alimentar de nosso próprio clichê e ilusão. A festa não tem culpa, pois os Carnavais da Europa são muito lindos, mais tradicionais, libertários e democráticos. A questão talvez resida no fato de que perdemos a razão da festa, do mito, da comunhão e do ritual (ou nunca soubemos). Durante alguns dias, o mundo pensará que o Brasil é o Rio de Janeiro. E muitos de nós, também.
*PROFESSOR DA UFPEL, CANTOR, ATOR E DIRETOR TEATRAL
06 de fevereiro de 2010 | N° 16238 ARTIGOS ZH

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